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Josy Almeida

Receita Para se Fazer um Monstro



Receita Para se Fazer um Monstro, do pernambucano da cidade de Garanhuns Mário Rodrigues, foi o vencedor do prêmio Sesc de literatura de 2016 na categoria contos. No livro, o autor relata, através do personagem narrador, as histórias da infância/adolescência de um garoto e suas perversas atitudes diante das mais diferentes situações. Tais lembranças são narradas ao longo de 93 contos curtos, ou melhor, enxutos, exatos. Sem apelações ou excessos. O personagem, inominado (propositadamente, talvez porque em vários momentos nos reconheçamos nele, mesmo que inconscientemente, daí a empatia com a obra e a negativa em rechaçar o personagem, mesmo quando das crueldades praticadas pelo menino) nos guia por essas memórias de forma não cronológica, porém bastante coerente, dividindo o livro em sete partes, o que o torna a leitura leve e ainda mais prazerosa. Os contos, sem títulos, dão a unidade que o livro necessita e revela a sagacidade do autor, que em cada tópico coloca quantidades diferenciadas de contos, nos mostrando, indiretamente, a importância que cada um dos temas teria para o personagem. Como em “Fêmeas”, onde encontramos apenas 9 contos, um dos menores tópicos, demonstrando a fugacidade com que as mulheres passaram por essa fase da vida do narrador, com exceção da mãe, que sempre esteve presente, mesmo que de forma fria e cruel, em toda narrativa.

A formação da personalidade do protagonista é meticulosamente revelada durante cada narrativa: a crueldade de cada ato, as maldades intrínsecas nas vinganças mesmo que tardias, as violentas brincadeiras da infância. “E eu era como a morte ou como a vida e por isso não me emocionava. Apenas agia.” Porém, há nesse universo de formação uma carência exposta, em diversos momentos, pela ausência da afetividade materna, que aflora em um dos últimos contos, uma espécie de despedida, o único onde o protagonista se refere à genitora com a forma carinhosa de “minha mamãe” e “minha mainha”. “Eu tinha um plano pra conquistar o amor de minha mamãe.” Onde antes ele chamara apenas de mãe, de forma seca e distante, como se fosse uma maneira de reciprocidade à frieza com que era tratado. “... Aqueles lábios roxos que nunca me beijaram(...)O nariz que nunca reconheceu meus cheiros(...) Aquele era o corpo que nunca de fato me encontrou e me acariciou.” Antes, porém, há ainda uma outra situação, única, na qual o personagem narra em terceira pessoa, como se quisesse se distanciar de tudo, de si próprio, das dores, dos desamores: “E o rapaz não está triste: Está - nas palavras dele - livre pela primeira vez.”

Quanto à técnica, Receita Para se Fazer um Monstro parece ter sido milimetricamente elaborado. A coesão do texto, a densidade narrativa na medida exata, sem arestas, e sem comprometer a linguagem, que aproxima leitor e personagem de uma forma quase familiar. O texto em primeira pessoa, o eu ficcional encontrando a narrativa perfeita. O uso constante e proposital de travessões, pontos e dois-pontos, revelando a personalidade do narrador, como ele mesmo sugere: “Só gosto do travessão porque lembra uma facada. E do ponto porque lembra um tiro. E dos dois-pontos porque lembram um cano duplo.” Outro recurso foi a utilização do polissíndeto, especialmente com a conjunção “e”, aumentando a expressividade e dando a ênfase necessária a determinadas passagens e situações em que o narrador quer chamar a nossa atenção. “... Com o nariz quebrado e o sangue começando a secar e a empretar e o olho roxo – e sua mãe indignada.” O uso repetido desses conectivos é como um grito silencioso do texto ao leitor. Uma outra técnica usada por Mário Rodrigues nesse livro é o uso de marcas comerciais nos relatos, o que nos aproxima não apenas do personagem, mas da época em que tudo ocorre, nos leva para dentro da história, proporcionando uma realidade inebriante aos fatos. Tudo se torna familiar, íntimo, verdadeiro.

Não é apenas a história, a montagem dos contos, a estética ou a dramaticidade do livro que fez de Receita para se fazer um monstro o vencedor de um dos prêmios brasileiros mais cobiçados de literatura, mas foi todo um conjunto da obra, a verdade do autor e a identificação do leitor com esse “monstro” que, inconscientemente, habita em cada um de nós, nas mais diversas formas e nos mais diferentes graus de exposição. E isso é o que seduz, o que inebria e o que dá prazer: a identificação, o reconhecimento do leitor com a obra, por mais diversa que aparente. Em literatura nem tudo se diz, sugere-se. Em quem se transformou hoje esse “monstro”? O que ele será agora? “Se você fosse tão bom quanto eu em ligar peças soltas talvez não houvesse mais perguntas sem respostas nesta história.” E assim é Receita para se fazer um monstro. Leiam e tirem suas próprias conclusões.



Texto escrito por Josy Almeida. Ela é escritora, contista, natural da cidade de Garanhuns – PE. Hoje reside em Recife, é Servidora Pública Federal, Técnica Administrativa em Educação da Universidade Federal de Pernambuco e aluna da Oficina Literária do premiado escritor pernambucano Raimundo Carrero.



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