Vou falar de heróis sem caráter. O livro é Macunaíma de Mário de Andrade, publicado em 1928. O livro é muito complicado para entender, mas é renovação da linguagem literária, pois possui traços de Dadaísmo (movimento literário lançado em 1916 pelo escritor francês Tristan Tzara (1896-1963), que ressaltava o subconsciente), Futurismo (movimento modernista lançado pelo autor italiano Filippo Tommaso Marinetti, que combate o passado), Expressionismo (arte e técnica de pintura, desenho ou escultura que tende a deformar ou a exagerar a relidade) e Surrealismo (escola literária e artística criada em 1924 pelo escritor francês André Bretton [1896-1966] com a proposta de renovar os valores artísticos, com ênfase para o irracional e o inconsciente). O livro é uma obra nacionalista crítica, sem ser xenófoba e que melhor sintetiza as propostas do movimento da Antropofogia criado em 1928 por Oswald de Andrade com o objetivo de igualar a cultura brasileira às demais. Mário de Andrade conta que escreveu Macunaína em apenas seis dias, deitado bem à maneira de seu herói, numa rede na chácara de Sapucaia, na cidade de Araraquara, no estado de São Paulo, durante as férias do próprio autor. O livro é fruto de pesquisas de pesquisa de lendas e dos mitos indígenas e folclóricos que o autor reúne utilizando linguagem popular de várias regiões do Brasil. Trata-se de uma rapsódia, termo que foi usado pelos gregos para designar obras como a Odisseia e Ilíada de Homero, contendo séculos de narrativas poéticas orais, e reunindo as tradições de todo um povo. Para o Mário de Andrade, que é musicólogo, a palavra rapsódia remete às fantasias instrumentais que utilizavam e processos de composição improvada, tirados de cantos tradicionais ou populares, como, por exemplo, as rapsódias húngaras de Liszt. Mário de Andrade também criou mitos de maneira icônica, além de descrever vários mitos. Apresenta os mitos da criação do futebol, do truco, do gesto da “banana”, ou do terno “Vai tomar banho”. Há em Macunaíma, portanto, além da imensa pesquisa do autor, muita invenção. Mario de Andrade nunca escondeu que se inspirou na obra Vom Roraima zum Orinoco – Do Roraima ao Orinoco, do etnógrafo naturalista alemão Theodor Koch-Grünberg, publicada em cinco volumes entre 1926 e 1924. Graças ao trabalho de Ivan Cavalcanti Proença, Roteiro de Macunaíma, é possível acompanhar como Mário de Andrade foi reelaborando as narrativas de Koch-Grünberg, mesclando-a a outras fontes como livros de Cipriano de Abreu, Couto Magalhães, Pereira da Costa ou relatos orais, como como o que o compositor Pixinguinha (Meu coração, não sei, porque, bate feliz, quando te vê) lhe fez de uma cerimônia de macumba para ir tecendo sua rapsódia. Nas lendas de heróis taulipang e arecuná, apresentada por Koch-Grünberg, Mário de Andrade encontrou o herói Macunaíma, que, segundo o estudioso alemão “ainda era menino, porém mais safado que todos os outros irmãos”. Macuníma é um personagem ambíguo. Nas palavras do poeta-crítico Haroldo de Campos, “o próprio Koch-Grünberg, em sua ‘Introdução ao Volume’, ressalta a ambiguidade do herói, dotado de poderes de criação e transformação, nutridor por excelência, ao mesmo tempo, todavia, malicioso e pérfido”. Segundo o etnógrafo alemão, o nome do herói tribal parece conter como parte essencial a palavra MAKU, que significa “mau”, e o sufixo IMA, que significa “grande”. Assim, Macunaíma pode significar “O Grande Mau”, um nome, segundo observa Koch-Grünberg, “que calha perfeitamente com o caráter intrigante e funesto do herói”. O Macunaíma é considerado um herói sem nenhum caráter. Foi na obra de Koch-Grünberg que Mário de Andrade, paradoxal e muito antropofagicamente, encontrou a essência do brasileiro. O livro é sensacional e explora tempo e espaço de uma forma genial, já qe as estripulias sucessivas do herói são vividas num espaço magico, próprio da atmosfera fantástica e maravilhosa em que se desenvolve a narrativa. Macunaíma é um personagem outsider, enquanto marginal, anti-herói, fora-da-lei, na medida em que se contrapõe a uma sociedade moderna, organizada num sistema racional, frio e tecnológico. Assim, o tempo é totalmente subvertido na narrativa.