Eu vou falar do livro O Elogio da Loucura, (em grego Morias Encomium, latim Laus stultitiae) que é um ensaio escrito em 1509 por Erasmo de Roterdão e publicado em 1511. O Elogio da Loucura é considerado um dos mais influentes livros da civilização ocidental e um dos catalisadores da Reforma Protestante (Reforma Europeia ou simplesmente Reforma, foi um movimento relevante dentro do cristianismo ocidental na Europa do século XVI que representou um desafio religioso e político para a Igreja Católica e em particular para a autoridade papal, decorrente do que eram percebidos como erros, abusos e discrepâncias cometidos pelo clero. A Reforma foi o início do protestantismo, além de ser considerada um dos eventos históricos que marcam o fim da Idade Média e o início do período moderno na Europa. Houve movimentos de reforma anteriores a Martinho Lutero. Embora a Reforma seja geralmente considerada como tendo começado com a publicação das Noventa e cinco teses de Martinho Lutero em 1517, ele não foi excomungado até janeiro de 1521 pelo Papa Leão X. O Édito de Worms de maio de 1521 condenou Lutero e proibiu oficialmente os cidadãos do Sacro Império Romano de defender ou propagar suas ideias.. O livro começa com um aspecto satírico para depois tomar um aspecto mais sombrio, em uma série de orações, já que a loucura aprecia a autodepreciação, e passa então a uma apreciação satírica dos abusos supersticiosos da doutrina católica e das práticas corruptas da Igreja Católica Romana.) O ensaio termina com um testamento claro e por vezes emocionante dos ideais cristãos. O ensaio é repleto de alusões clássicas, escritas no estilo típico dos humanistas do Renascimento. A Loucura se compara a um dos deuses, nascida nas lendárias Ilhas Afortunadas, filha de Plutão, deus das riquezas, e da ninfa Neotetes (ou seja, a juventude), amamentada por "duas graciosíssimas ninfas", Mete (a Embriaguez) e Apédia (a Imperícia), filha de Baco e cujos companheiros fiéis incluem Philautia (amor-próprio), Kolaxia (adulação), Lethes (esquecimento), Misoponia (horror à fadiga), Hedoné (volúpia), Ania (irreflexão), Trophis (delícia), Komo (o riso e o prazer da mesa) e Nigreton Hypnon (sono profundo). O Elogio da Loucura conheceu um enorme êxito popular, para surpresa de Erasmo e, também, para seu desgosto. O Papa Leão X achou a obra divertida. Antes da morte de Erasmo já havia sido traduzida para o francês e alemão. Uma edição de 1511 foi ilustrada com gravuras em madeira de Hans Holbein, que se tornaram as ilustrações da obra mais difundidas. A obra influenciou o ensino da retórica no final do século XVI, e a arte da adoxografia (o elogio imerecido de pessoas ou coisas sem valor, vulgares) e se converteu em um exercício popular entre os estudantes elisabetanos. Erasmo faz desfilar pelas páginas desta obra toda a mesquinharia e pequenez desse “animalzinho, tão pequeno e de tão pouca duração, que vulgarmente se chama homem”. Uma inversão de valores, onde a razão, o bom-senso, a seriedade são fustigados, enquanto a loucura é louvada. “Todas as coisas são de tal natureza que, quanto mais abundante é a dose de loucura que encerram, tanto maior é o bem que proporcionam aos mortais.” Loucura não no sentido psiquiátrico das doenças mentais como esquizofrenia ou psicose maníaco-depressiva, mas – fazendo uma brincadeira com o nome do amigo Thomas Morus, a quem dedica a obra – no sentido da palavra grega Moria (μωρἰα), que, segundo o próprio autor, corresponde ao termo latino Stultitia, ou seja, estultícia, “atributo, característica do que é ou se apresenta de modo estúpido; tolice, parvoíce, estupidez”, segundo o dicionário Houaiss. Trata-se de uma sátira à insensatez e irracionalidade humana, espécie de reductio ad absurdum em que, ao dar a palavra à “deusa” Loucura e permitir que elogie a si própria e o comportamento tresloucado que inspira ao ser humano, o autor no fundo expõe o absurdo de tal comportamento. Diz a Loucura: “Quanto mais contrária ao bom senso é uma coisa, tanto maior é o número dos seus admiradores, e constantemente se vê que tudo o que mais se opõe à razão é justamente o que se adota com maior avidez. Perguntar-me-eis por que? Pois já não vos disse mil vezes? É porque quase todos os homens são malucos.” Ninguém escapa à lupa de Erasmo: os negociantes, “os mais sórdidos e estúpidos atores da vida humana”; os gramáticos, “ou sejam os pedantes”; os judeus, que “vivem satisfeitíssimos, à espera do seu Messias, e, muito longe de impacientar-se pela enorme demora, obstinam-se cada vez mais em esperá-lo”; os poetas que “fazem consistir toda a sua arte em impingir lorotas e fábulas ridículas para deleitar os ouvidos dos tolos”; os escritores, que “pensam, tornam a pensar, acrescentam, emendam, cortam, tornam a pôr, burilam, refundem, fazem, riscam, consultam, e, nesse trabalho, levam às vezes nove e dez anos [...] antes do manuscrito ser impresso”; os advogados, que “fazem uma porção de leis que não chegam a conclusão alguma”; os filósofos, que “enquanto se gabam de saber tudo, não estão de acordo em nada”; os reis, “divertindo-se diariamente nas caçadas, possuindo belíssimos cavalos, vendendo em benefício próprio os cargos e os empregos, servindo-se de expedientes pecuniários para devorar as energias do povo e engordar à custa do sangue dos escravos”, etc. Não escapam sequer os teólogos, embora, ao satirizá-los, o autor corra o risco de ser tachado de herege, algo perigoso na época. Quase no final da obra, num exercício de “exegese bíblica” – algo antes do Renascimento impensável, já que então se acreditava que o livro sagrado deveria ser tomado ao pé da letra, sem interpretações – Erasmo (pela boca da deusa Loucura) procura respaldar seu “elogio da loucura” em textos bíblicos. Por exemplo, “a loucura de Deus é mais sábia que a sabedoria humana” (1 Coríntios 1:25). Moral da história: “a religião cristã se coaduna perfeitamente com a loucura e não tem a menor relação com a sabedoria”. (E aqui Erasmo é tão convincente que a gente acaba na dúvida sobre se ainda está satirizando ou acabou se convencendo da tese da superioridade da loucura.) E Erasmo encerra seu Elogio com uma digressão brilhante sobre a dicotomia entre a visão materialista (“os que se ocupam somente com o Corpo”) e a visão espiritual (“os que se entregam inteiramente à pia cultivação da alma”) da vida humana.
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